Thursday, October 28, 2010

Cântico MCXIX

na foto: Johnny Cash




Tentaram os homens do bar
tomar minha garrafa de gim
e meus últimos trocados.
Mas não temi seus punhos
nem seus olhos escuros.

Cuspiram em meu nome
e arranharam minha guitarra.
Tentaram quebrar suas cordas,
e jogaram água quente sobre ela.

Caminhei entre a horda de assassinos,
e a porta dos juízes sem misericórdia.
Sem sapatos e sem agasalho
andei na noite sem lua e sem uma espada.

Fizeram vudus e entoaram canções ruins
e sacrificando doces ovelhas,
ensanguentaram meu nome.
Espalharam asas de borboletas
negras em meu telhado de palha.

Mas é que nasci da água azul
sob uma lua branca como a Morte.
Sobre pedras e entre lótus,
continuei a cantar com minha guitarra
e a caminhar sóbria e descalça.

Sobre o limo e galhos verdes,
entre vento perfumado de verão
e chuva de prata, meus pés erguem-se
no ritmo da eterna canção,

como anjo caído, sigo livre de feitiços.
Com a consciência da cor dos riachos
que dormem iluminados sob as grutas.

Friday, October 15, 2010

Jardim de rosas




Uma noite no deserto das gardênias
Um dia numa legião de jasmins.

Uma hora no ninho de orquídeas,
um minuto na casa das magnólias.

Um ano na estrada das hortênsias,
um segundo na rua das rosas vermelhas.

Uma noite entre copos-de-leite e estrelas
um dia nas montanhas de cerejeiras.

Estive caminhando entre espinhos e cercas
mas meus pés se cortaram demais, e tarde, encontrei as papoulas suaves.

Não mais perderei um dia na lama e fumaça,
não gastarei mais um segundo entre pulgas e labirintos.

Cada dia, um dia, uma vida, uma encarnação.
Entre lírios, violetas e estrelítzias.

O corpo na poeira, na água, na nuvem,
o corpo no amor das lilases.

Sunday, October 10, 2010

Os abutres





Como Candida Erendira corri com o vento
e os abutres continuaram sentados à mesa de costas para mim.
Acendi uma vela no meio da clareira da floresta
e orei aos meus pais, que são deuses, me livrassem do Mal.

As aves terríveis se odiavam e partilhavam o mesmo pão e a taça de vinho.
O rei dos abutres erguia o pescoço retorcido com uma altivez autista.
E contava os contos e miçangas de suas caças às carcaças
e cantava com sua voz profunda e rouca as monstruosidades de sua vida rapina.

Corri contra água e vento deixando entre eles apenas minhas pegadas de criança.
Anjo pequeno e medroso que teme as sombras da noite
e por isso pediu a Deus que voasse somente durante os dias.
Anjo do tamanho de uma flor de jasmim, que não olha nos olhos das gentes.

E voei, com asas de casca de ovo de martim-pescador, e vestido de seda que os bichos fizeram.
Voei e as águas não me arrastaram, nem me levarão. Pois os deuses me escolheram
e me cobrem com escudos e maças de guerra, e afastam os abutres,
comedores da podridão, do lixo espalhado pelo chão, os covardes devoradores de vermes.

Cantei no escuro e desenhei encantos nas paredes da caverna que dá para o mar.
Fugi e escondi as chaves, e somente meus herdeiros distantes as encontrarão.
Os abutres secarão no deserto de suas memórias escuras
e morrerão de inanição no jardim de seus odiosos pensamentos
enquanto me erguerei à sombra dos deuses que me estendem seus pomos secretos.