Saturday, January 16, 2010

Nunca quis literatura




Bastava-me música.
Que o pardal viesse e bebesse água
do vaso de azaléia e o gato ficasse a olhar
e eu me risse quando ele corresse atrás do pássaro.

Que eu amasse enormemente
e fosse amada na lua nova em retorno,
no túnel de chuva, na apatia das terças-feiras.
Na praia ao pôr-do-sol de um verão ditatorial,
que eu visse os anéis de Saturno a libertarem
a Terra do domínio maoísta do tempo e das temperaturas.

Bastava-me caminhar na grama com pés descalços
e tocar música com o violoncelo, amigo discreto,
a atrair os gatos da rua e os abutres desprezados
para uma festa de inválidos regada a minuetos e vinhos.
Bastava-me o canto e o cheiro de jasmins depois da chuva
e as formigas entre as pedras movendo suas coisas
anunciando chuvas torrenciais entre as pedras e coisas.

Bastava-me correr. Ser só. Que ninguém me visse.
Que não me falassem, que não competissem
nem me arrastassem para suas opiniões
cheirando a lixo e perfumes com as mesas
cheias de cadáveres e eu tendo que sorrir para deputados
e professores-poetas segurando suas taças de champanhe
tão finamente e cigarros entre os dedos, altos.

Que me larguem e me esqueçam. A rua amanheceu fria.
Para ser, dizem, é preciso ser duro, persistir e trabalhar duro,
cinzelando e se sujando e criando gastrites e dores lombares.
Por que pressupõem tais prazeres pervertidos?
Não frequento Paraty, nem Frankfurt, nem qualquer lugar
onde os elegantes se reúnem em fóruns, mesas-redondas
(falam tnto que suas bocas se abrem a cada dia mais)
pois não conheço Euclides da Cunha nem Borges,
nada sei em detalhes porque não passei noites em tomos.

Sou uma simples moça no campo, trabalho na vinha
só para meu sustento, e para alimentar meus animais.
À noite toco música e meu violoncelo me basta.
Predisseram que eu seria intelectual, poetisa, literata, diplomata.
Nunca quis literatura. Bastava-me o rio à tarde e minhas claves.
Literatura eu mancho com vinho e biscoitos caseiros.

3 comments:

Lucia said...

linda. adorei

Francisco said...

faz tempo que eu não vejo um bom poema assim.
muito bonito mesmo.
não conheço Euclides da Cunha nem Borges também, e a imagem do campo me deu saudade.

gostei muito.

(e se me permite dar uma dica, os Labels de palavras com acento não funcionam. você poderia tirar os acentos das palavras ou mudar para sinônimos. eu tive que fazer isso no meu, então... =] só uma dica mesmo)

abraço.

Cecil said...

Oi Francisco, obrigada pela visita e por gostar do poema. Volte sempre que puder...

Só não entendi muito bem a dica sobre acentos nas palavras... labels de acentos? Que significa? As palavras do poema me parecem acentuadas de forma satisfatória...rsrsrs.

Um abraço.