Sunday, November 30, 2008

Chamado

"Le concert", M. Chagall



Abre o teu coração

para os olhares e suspiros do Universo que,

astuto, prepara a mesa, e a barca que te levará

se quiseres, até a beira da vida, até a roseira do mundo

até o poço de açoitamento de deuses

onde verás o sangue dos divinos jorrando

onde sentirás o perfume de mil acácias mortais e belas



Não fujas! Canta comigo e lança teus braços

o mar proclama, o amor reclama

os beijos de colombinas e valetes e outros saltimbancos

Não foge, ama-me, nada tens a perder.



Abre teu coração, teus olhos, teu corpo

ao suspiro imenso que a noite inventa

à luz desejada da manhã, dança comigo à tarde

e adormece à noite em meus braços fatigados

e ressona meu poema, com a cabeça sobre ele.


Saturday, November 22, 2008

Oração, ervas


"Les Saltimbanques Dans la Nuit", M. Chagall



A pedra.

Recorda-te:
a única árvore que não morrerá.
A tarde é azul
e a memória dança entre as folhas.

O templo.

Recorda-te e respira:
a luz dourada que repousa
transborda e mendiga.
O espaço é simetricamente
sobrenatural.

A estrada de terra.

Recorda-te, vive:
guarda no cantil, na mala
as maçãs da viagem
e as canções do crepúsculo.

A noite.

Em poucos minutos
a luz dissolveu-se nas paredes
e o céu amoroso e triste
como uma velha atriz
que fuma no camarim – e sorri.

O templo.

Recorda-te:
o amplo círculo do dia
gira e nunca teme.
O porvir carrega morcegos
e não teme a morte.
Recorda-te,
tira os sapatos.

Little Girl Mourning Shine

"Bride with Blue Face", M. Chagall


while the white cat
was falling asleep
the little sad song
began to crawl on the street

when the dragonfly
swept away in the wind
in the blink of an eye
little girl started to cry

in the meantime of two jokes
when two clouds dreamt away
I felt so lonesome in a sudden
quick move of two jacks of spade.

Tuesday, November 18, 2008

Quarteto para o Fim dos Tempos


"Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse", A. Dürer


Para o abismo deslizamos todos lentos.
Entre nós, um licor viscoso amargo
Ódio e esqueletos de devorados pássaros
O desprezo que nos arrasta muito largo.

Para o sepulcro a torrente leva todos,
as crianças mórbidas, os monstros podres vivos
de ignorância e as baratas que espreitam.
Os leões fogem empalidecidos.

Ah quanto se perde! Quantas horas
Quanto vazio entre sangue e espadas
Tanto desfazer, tanta água em torno
da barca sozinha entre harpias aladas.

Entre restos de carantonhas vazias no tempo
de desafeto e armaduras no longo desalento
Decompõe-se a lápis esgares e mãos partidas
enquanto nascem crianças tortas desvalidas.

Friday, November 14, 2008

Bourgogne



para vocês-sabem-quem

Somente no bojo largo
da taça da noite
é que explode
o seu delgado buquê

Nem grande tanino,
nem minerais nem terra.
Você é alternadamente
ácido e tânico
e só no largo útero da noite
é que revela seus reflexos
rubi-alaranjados
e suas tonalidades harmônicas
mas também as dissonâncias
que espreitam tímidas
nos olhos negros nos cabelos
no seu corpo e no corpo da noite.

A noite é seu trono de ambrosias
e pães ricos, águas azuis, grãos macios
E é seu reinado de venenos anidros
A noite é o bojo largo
em que explodem os seus aromas

Minhas sensações enlouquecidas
esperam impacientes a total libertação
das novas flores, dos frutos amargos,
dos doces escondidos
por trás da tua ampla presença
na boca, no olfato, nos ouvidos
do meu corpo ensandecido
de rica e floral degustação
No grande seio da taça da noite
é que mostras o teu leque
de um definido e jovem buquê.

Sunday, November 09, 2008

A Grande Música

"Melancholia", A. Dürer




canto a constância dos ciclones

não ouvir música traz a sobriedade


Aquele maldito russo com seu piano assombrado

de mares negros e árvores mortas

implanta em meus olhos a floresta ampla

que alastra os vales dos teus olhos


canto a constância dos ciclones

não ouvir música traz a serenidade


Alaga os quartos este trio elegíaco

onde habita um violino que já se dissolve

na persistência do desejo sobre a matéria


canto a constância dos ciclones

não ouvir música traz a saciedade


Uma doente travestida sob uma camisola antiga

espalha esgares descomedidos no corredor

buscando no som dos braços que rasgam o ar

um padrão que fixe em madeira e aço

todos os sorrisos, os movimentos, os ecos de tua presença


canto a constância dos ciclones

não ouvir música traz a senilidade


Agora me rendo à ferocidade da vontade

Agora me rendo ao perfume espectral de flores tirânicas

Entrego-me à doçura desesperada dos sentidos

Arderei na sagração do tanino de um beijo mantido

no tonel construído por um luthier envelhecido


canto a constância dos ciclones

não ouvir música é possuir a sanidade.

Friday, November 07, 2008

Eu te amo

Na Floresta da Tijuca.


Acho que estou doente. Algo dos pulmões.
E no coração só uma sensação de abrasamento
como se estivessem a marcar com ferro quente
por toda a extensão do miocárdio.
É preciso toda a memória para resolver em palavras
as querelas quando se bebeu meia garrafa de vinho.
Amor é tão lugar comum, diz uma canção
e sento-me de madrugada entre morcegos
para chorar pesadelos e lamentar ânsias de vazios futuros.
Nada se sabe e ninguém sabe, os ouvidos e as narinas entupidos.
Mas os perfumes e as echarpes que uso são divinos
e isso basta para receber olhares de admiração.
Ao fim da noite entretanto, soluço, e asfixio, poções de bruxas.
Sinto teus cabelos entre minhas mãos, e lembro-me de campos
de ervas suaves, e crianças e gatos, e penso em mim chorando.
E choro. Atriz, ou pitonisa.
Mas será isto amor, ou teatro, ou auto-compadecimento?
Inteligente e refinada demais para o lamento público
mas sensível e ultra-romântica, patética, para a urbe que assoma
pelas letras e elétrons através da janela.
Canto e sou triste em minha alegria, e prefiro
dez ferrões de abelhas e dentes de serpentes inesperadas
que sobrevêm ao teu beijo, à morbidez do engano,
da subcultura e do mal-gosto que suportei antes de ontem.
Prefiro a guilhotina, dou-me o pescoço, os seios e a mente
à lâmina última e altiva, mas recuso a nuvem de calor do meio-dia.
Confesso, e sofro, mas não peço esmolas.

En passant

Noite de novembro. O Cosme Velho cheira a rosas e não há água na torneira. Bebo vinho e ouço Don Giovanni seduzindo Zerlina, a mais enxerida das personagens operísticas.

Thursday, November 06, 2008

Felipe

Reproduzido da graphic novel "V for Vendetta", de A. Moore.


Um Éden sem Deus
é a casa em que habita
o Adão sem maçã nem pecado
nem história, nem anjo Gabriel.
Não adianta – ainda tens um poema
um poema a mais
após a eclosão do fim.
O vinho sobre a mesa
harmoniza-se sob a luz
lunar espalhada pelos cantos.
Mesmo triste, o vinho
é harmonia com teu corpo.
Outros tentarão tirá-lo de ti
Outros tentarão imitá-lo.
És música – perfume afora
verde-escuro, e rosa, floresta.
O Jardim do Éden sem Deus
e os cantos do outono à capela.
És, Felipe, o anjo sem oração,
sem asas, sem perdão.

Sunday, November 02, 2008

Cantilena de Amor no Escuro


"Maria Madalena", Georges De La Tour



Acabou-se a luz
Da lâmpada elétrica
Escrevi patética
Uma ilha de luz.

Compondo no escuro
Cegueira e grafite
Desenhei no sulfite
Teus olhos de escuro.

Envolvida em breu
Núcleo quente da vela
Cultivo com ela
Teus cabelos de breu.

No espaço sem fim
A ilha dourada
Ampara a esplanada
De saudade sem fim.

De dentro do escuro
Palpita o pardal quente
Do desejo urgente
De vôo no escuro.