Saturday, December 04, 2010
Cântico MCXXII
Como na era do deus-sol
lembranças de um piano descendente de tempos
em que desertos circundavam estas terras.
Palavras vestiam mantos de ministros
e coroas de princesas aladas na escuridão do tempo
o tempo da juventude sem futuro e sem passado. Pois
o jovem não tem planos, apenas moedas estrangeiras
para adoração de formas esverdeadas nas cédulas caducas
mas devera modernas, que escondem em suas
calças largas roubadas de seus pais de bigodes.
A mente nunca esteve tão clara e decidiu tão grandes pensamentos
quanto quando tínhamos 16 anos. E as folhas que esconderas nos livros
ainda as guardo, e não lamento nada, nenhum poema,
nenhuma lágrima, nenhuma noite sóbria de medos e ternuras entre selos.
Assim fecho o livro de cantigas e berceuses, entre cravos e amarílis
sem ainda saber o fim do livro e sem protagonistas.
Mas entre acordes menores e blue notes
nas estrelas mal nascidas através da janela
numa enorme caixa de papelão, canto a luz
e a cor que podemos ver, sempre e sempre, e que não envelhecerá.
Thursday, December 02, 2010
Cântico MCXXI
Que chova toda a noite
e que jasmins brotem nas copas de manhã.
Amanhece como uma nuvem entre jazidas de prata.
A serpente em meu corpo revolta-se entre pesadelos
e canta com voz de anjo na cavalgada branca.
Noites de vigília triste, guerras previstas
pela anciã que lê em cartas de tarô, e serpentes choram.
Que chova e que o sol não apareça,
majestade tirânica, sépia desejaria.
Em contrário tenho o manto deslumbrante
dos saques ao povo do leste.
Que chova.
Amanhã que seja um dia noturno
de sonhos de um outro dia,
de delírios semifebris de outras eras
à espera de um messias de calças curtas
negrinho com uma guitarra às costas.
Que chova.
Friday, November 05, 2010
Cântico MCXX
Seguem meus passos na lama da chuva,
mas não me vêem na neblina.
Repetem o eco de minha voz no vale noturno
mas não encontram o tom menor da canção.
Bebem minhas lágrimas e desejam minha pele,
mas não convencem com suas políticas e palavras alheias.
Rastejam atrás de meus doze véus escuros
mas não encontram em suas sombras a luz.
Os inimigos são muitos,
a poeira é densa, a noite é longa e a água é pouca.
Mas seguem meus passos ainda,
no areal, na neve e nos campos, mas não me vêem.
Thursday, October 28, 2010
Cântico MCXIX
Tentaram os homens do bar
tomar minha garrafa de gim
e meus últimos trocados.
Mas não temi seus punhos
nem seus olhos escuros.
Cuspiram em meu nome
e arranharam minha guitarra.
Tentaram quebrar suas cordas,
e jogaram água quente sobre ela.
Caminhei entre a horda de assassinos,
e a porta dos juízes sem misericórdia.
Sem sapatos e sem agasalho
andei na noite sem lua e sem uma espada.
Fizeram vudus e entoaram canções ruins
e sacrificando doces ovelhas,
ensanguentaram meu nome.
Espalharam asas de borboletas
negras em meu telhado de palha.
Mas é que nasci da água azul
sob uma lua branca como a Morte.
Sobre pedras e entre lótus,
continuei a cantar com minha guitarra
e a caminhar sóbria e descalça.
Sobre o limo e galhos verdes,
entre vento perfumado de verão
e chuva de prata, meus pés erguem-se
no ritmo da eterna canção,
como anjo caído, sigo livre de feitiços.
Com a consciência da cor dos riachos
que dormem iluminados sob as grutas.
Friday, October 15, 2010
Jardim de rosas
Uma noite no deserto das gardênias
Um dia numa legião de jasmins.
Uma hora no ninho de orquídeas,
um minuto na casa das magnólias.
Um ano na estrada das hortênsias,
um segundo na rua das rosas vermelhas.
Uma noite entre copos-de-leite e estrelas
um dia nas montanhas de cerejeiras.
Estive caminhando entre espinhos e cercas
mas meus pés se cortaram demais, e tarde, encontrei as papoulas suaves.
Não mais perderei um dia na lama e fumaça,
não gastarei mais um segundo entre pulgas e labirintos.
Cada dia, um dia, uma vida, uma encarnação.
Entre lírios, violetas e estrelítzias.
O corpo na poeira, na água, na nuvem,
o corpo no amor das lilases.
Sunday, October 10, 2010
Os abutres
Como Candida Erendira corri com o vento
e os abutres continuaram sentados à mesa de costas para mim.
Acendi uma vela no meio da clareira da floresta
e orei aos meus pais, que são deuses, me livrassem do Mal.
As aves terríveis se odiavam e partilhavam o mesmo pão e a taça de vinho.
O rei dos abutres erguia o pescoço retorcido com uma altivez autista.
E contava os contos e miçangas de suas caças às carcaças
e cantava com sua voz profunda e rouca as monstruosidades de sua vida rapina.
Corri contra água e vento deixando entre eles apenas minhas pegadas de criança.
Anjo pequeno e medroso que teme as sombras da noite
e por isso pediu a Deus que voasse somente durante os dias.
Anjo do tamanho de uma flor de jasmim, que não olha nos olhos das gentes.
E voei, com asas de casca de ovo de martim-pescador, e vestido de seda que os bichos fizeram.
Voei e as águas não me arrastaram, nem me levarão. Pois os deuses me escolheram
e me cobrem com escudos e maças de guerra, e afastam os abutres,
comedores da podridão, do lixo espalhado pelo chão, os covardes devoradores de vermes.
Cantei no escuro e desenhei encantos nas paredes da caverna que dá para o mar.
Fugi e escondi as chaves, e somente meus herdeiros distantes as encontrarão.
Os abutres secarão no deserto de suas memórias escuras
e morrerão de inanição no jardim de seus odiosos pensamentos
enquanto me erguerei à sombra dos deuses que me estendem seus pomos secretos.
Monday, September 06, 2010
Sacra
Há anos não vejo o mundo exterior.
Fora deste salão contam histórias e lavam as casas.
Não atrevo-me a expôr minha cabeça à foice do sol.
As raposas andam à caça de aves pequenas nos ninhos.
Falcões foram tomados por corvos, pois na cidade
não restam mais do que corpos inertes e espectros
que contam histórias, que bebem anis e lavam casas.
Se o arrependimento é um carrasco,
vi sua carantonha por baixo do capuz.
Pois assisti às horríveis orgias dos deuses,
vi deusas nuas e descobri que eram cadáveres podres.
Nunca foram belas nem há titãs protetores.
Apenas bêbados em templos comendo pernis
e bebendo sangue de perdizes inocentes.
Não mais permitirei que devassem a sala de orações.
Não mais permitirei que adentrem os banhos dos infantes.
Não deixarei escapar mais uma palavra
para que os inimigos não adivinhem nossos pensamentos e ações.
Não nos trairemos novamente.
Não daremos as mãos aos homens imundos
que abrem suas bocarras em bares e perseguem
com olhares de abutres as mulheres.
Não mais conhecerão nossa política, nossos livros,
nossas canções, nossa bebida e nossas fogueiras de festa.
As raposas chamuscadas conhecerão apenas as costas de nossos mantos
e os véus que guardam orações, escuros, negros por falsa fumaça,
esta que disfarçará as cristalinas lágrimas de pura alegria de nossas fontes antigas.
Tuesday, June 08, 2010
A virada da maré
Se não possuíssem bocas para descrever
e julgar as cores dos céus com tanta veemência
teriam mais tempo para perceber a virada da maré,
as ondas se levantando mais alto, as gaivotas se apressando
antes da noite com seu véu de negrura e frio.
O frio da madrugada e seu silêncio que embalam a ante-sala do fim.
Não percebem, não ouvem os homens tolos,
não vêem as mulheres fúteis, as crianças barulhentas.
A grande tragédia que se abate sobre o povoado,
a enorme onda que avança, a chuva que antecipa a escuridão
e a tempestade que caçará pássaros, crianças e vagalumes.
Mas a virada da maré é planejada pelos deuses,
e eles não podem duvidar do que fazem.
Deuses não hesitam nem agem por capricho.
Amanhã o sol cantará sobre nuvens brancas
vestindo o manto de lágrimas derramadas em noites de terror
e será belo, será alto, será real.
Haverá festa e champanhe, pessoas e vestidos finos,
luvas e cigarrilhas, enquanto crianças riem do lado de fora
atrás de um cão que persegue uma bola.
E estrelas marinhas repousarão sobre as copas de jasmineiras
e mangueiras, trazidas pelo mar furioso.
Reluzindo por sobre as cabeças dos bebês
e dos violoncelistas que farão música para reis.
Não ouvem que precisam reparar na virada da maré
o ponto onde tudo se perde, amigos, falsos amores,
tristes lembranças, risadas e desejos brutos,
fazem troça e posam de grandes enquanto a maré se transforma
enquanto revira os olhos, num delírio quase funéreo
de nuvens que anunciam um certo apocalipse, e pássaros partem.
Friday, April 09, 2010
Batismo felino
Necessito de um poema ambulante,
o qual eu possa levar comigo quando tomar a barca Rio-Niterói.
Suportar aquele tédio pequeno, aquela pobreza na baía, por sobre o pequeno mar.
Hoje acredito ter encontrado uma maçaneta perdida.
Não me lembrava de que existia essa porta para um quintal úmido,
onde há musgos e cogumelos amargos, florezinhas enlouquecidas
e córregos de chuva nas canaletas entre as pedrinhas que os gatos usam para brincar.
Hoje retorno ao meu elemento.
Não falo com qualquer pessoa. Não é preciso, e elas
não compreenderiam. Como os felinos compreendem
com seus olhos em chamas no escuro.
O gato olha o espelho curioso, mas não falo com ele, não reage, não luta.
Não falo com os passantes nem com as pessoas da casa.
Sempre estive em silêncio como aquele quadro
no canto esquerdo da balaustrada, do menino que morreu na guerra
de 1914 e hoje é tio-tataravô de alguma criança gulosa e cruel.
Mas hoje estou em silêncio como o gato que mora no telhado do sótão.
Hoje retorno ao meu elemento e há somente engrenagens,
música, vento, linhas suaves, cardióides, e um par de botas.
Não levo guarda-chuvas, pois isto é para homenzinhos que vão para o trabalho
às seis horas da manhã no inverno, se encolhendo sob marquises
quais luzinhas esfumaçadas.
Hoje sei quem sou, hoje não faço concessões aos grupos felizes ou patrões corretos.
Não pago impostos ao Estado, este velho flatulento.
Hoje retorno ao meu elemento.
Reúno-me com os gatinhos nos telhados nas noites sem lua,
e faço desjejum com os grandes felinos à sombra da jasmineira nas manhãs de primavera.
Saturday, February 20, 2010
Malbec
Sou um poema.
Deixo o lastro roxo nos cantos do mundo
no lábios do mundo, nas curvas do mar
do vinho que ainda desliza pela garganta.
Autrália, Argentina. Uma distância cumprida
no toque de um compasso entre bocas semicerradas.
Deixo o lastro lírico violeta chorando seus álcoois
na vidraça das taças e dos olhos que evito no sonho
e reencontro no desejo da madrugada.
Lúcida mágica de lamparinas e traços nas mãos
que designam destinos superiores.
Somos livres, somos poemas, e nada pode impedir
o encontro dos rios e a navegação por animais rebeldes.
Num compasso ternário danço a distância
entre continentes, roxa, lilás, azul-marinha.
É a voz do romance, no corpo do vinho,
um romance para violoncelo, à luz de uma noite que não termina.
Sunday, February 14, 2010
Encontro
Os poetas escrevem cartas para os anjos.
Numa noite, os lábios criaram cristais na opressão do escuro.
O desejo explodiu por cima das flores,
das taças de vinhos e trumpetes
como chuva de exuberância, suco de tangerinas e estrelas cadentes.
Encontros que celebramos. Cantamos.
Flautas, violoncelos, baterias e guitarras, claves e um beijo.
Vejo os caramujos e cigarras entre as folhas do aquário
zunindo orações esquecidas que agora retornam
como um refluxo de correntes quentes e frias, formando erupções marinhas.
Uma festa de frutas e luzes baixas de cores maliciosas,
com intromissões do flugelhorn e de um contrabaixo ligeiro.
No centro do tornado, não há paz -
esquece-se o tornado vendo-o, em estupefação.
Os deuses em orgasmo geram uma sequência de catástrofes
belas e sinuosas, lápis-lazúli num véu sobre o sangue do mundo.
Festas de cetim e vinhos que terminam em estertores de amor
na noite de um verão concebido pela música de titãs luminosos.
Assim os poetas terminam seus relatos aos anjos.
Thursday, February 04, 2010
Florbela
Todos me amam.. e no entanto nenhum indivíduo
me escreve poemas ou cartas, não me trazem as glórias da manhã.
Que espécie de adoração falsa e pequeno-burguesa.
Amam-me como a uma deusa, porque têm de amar,
inevitavelmente, não porque o querem. Mentirosos.
Que amores a admirações são estas que me separam
da doçura e do calor do lar e das fogueiras dos amigos sob a lua?
Que me postam em altares onde
sacrificaram cordeiros e restam frios restos de vela,
onde apenas a lua colhe as lágrimas agridoces
de quando me trazem água benta por padres devassos?
Que falsidades extremas, como quando vêem uma miragem
ou fantasma - incapazes de demonstrar real amor,
apenas medo e furor, como diante de um crepúsculo maligno.
Afastem-se de uma vez, suplico, deixem-me,
não toquem em minhas pétalas com estas ferramentas
cheias de cascas, cimento, lama e restos de comida.
Não se finjam de meus mecenas, de meus adoradores,
meus amigos e amantes, fora toda a gente infame.
Friday, January 29, 2010
Nicholas
I have been mourning you for days and nights
I have been mourning and crying to the moon
You would have waited for me if you knew I was mourning.
Such a black beauty could not last upon the white earth
but a star remains alive in its long flying light.
You are so beautiful that it hurts
deeper than a stone above the abyss.
You are so pale and dark in the mist
that my heart seem to stop for the glory of Infinity.
You could have waited for me over the creek.
I forgot the cruel world and its beasts
I flew light and everywhere, rose high and looked for you
but your face seemed to fade in the mist among the black and white
like horses in the field of rice and sand, near the river.
The sound hurts and all the poets are all dead
it means we can rest now, my dearest love.
We can see the ocean and walk over the fields
of flowers, green leaves and dead bodies of poets.
Poets fallen like feathers or stones taken by gods from the hills.
You could have waited, how could you be so impatient?
Now they'll know you were here when you're gone.
And I will stay on the train station looking to the lines
and crying for your black hair in the wind that's gone.
Everything gone to the hole of time, through the eye of Forgetting
but I desperately cannot forget in the early morning
the prayers your hair sent to the tiny gods of thunderstorms.
We shared ours hands on the creek
and we wore clothes made of plants and shells.
It hurts so much I cannot write anymore.
I feel as I was going to vomit my spirit if I had one.
It hurts, Nicholas, and you thought I didn't know
what love was, how it feels to be in pain every day and night.
I wish you had waited on the river.
For the first time I know the horrible pain of your loss
but I won't last on this earth for I'm going after you
wherever you are I will find you and we shall laugh and sing.
I promise I won't stay and watch your pictures as a dying rose.
I have already died many times watching the river take your shadows away.
Tuesday, January 26, 2010
História da minha passagem
Piso nas folhas escuras, exalam um perfume do verde morto.
O aroma da caverna da existência - nela que, entretanto, não entramos.
Vem me chamar para casa, vem me seduzir pela combinação do coração e
de seu imenso véu, pelas harmonias estranhas de uma música
que ninguém ensinaria neste mundo.
Ninguém entende uma só palavra, então já me calei.
Não me interessam as políticas e reestruturações,
as organizações de pesados eventos e reuniões de pessoas
que não são mais do que seus cargos e funções, elas nunca existiram.
Tomo o ônibus pela manhã em que chove fumaça escura
e é apenas meu corpo que adentra a maquinaria.
Meus olhos apontam para onde minha alma passeia.
E lá estou nos campos molhados e a grama enfeitiçada,
e na praia rochosa sob uma chuva, como suaves palavras
cantadas por deuses-músicos que mal pisam o ar.
Enlouqueci, e assumo a liberdade dolorosa da esquizofrenia.
Nela encontro meus deuses silenciosos e sacrifico a eles
pedaços de nuvem e notas simples, sem vibrato, do velho violoncelo.
Nela encontro meus gatos e outros animais partidos deste mundo triste,
fantasmas que correm como crianças e maçãs verdes trazidas pelo mar
e conchas que saltam da neve, descobertas na arqueologia do delírio
em que nos lançam a noite, o tempo, a ausência da lua e a perda da memória.
Fecho a porta e jogo a chave pelo buraco que dá para um abismo.
Cerro as cortinas destes dias e não vejo nem ouço quem me fala.
Apenas observo, e assisto, o rio, o espaço, as estrelas, os cometas, as supernovas.
Falam-me as trompas, as guitarras, os oboés e violinos
contam-me uma história de quando eu nascer de novo.
Saturday, January 16, 2010
Nunca quis literatura
Bastava-me música.
Que o pardal viesse e bebesse água
do vaso de azaléia e o gato ficasse a olhar
e eu me risse quando ele corresse atrás do pássaro.
Que eu amasse enormemente
e fosse amada na lua nova em retorno,
no túnel de chuva, na apatia das terças-feiras.
Na praia ao pôr-do-sol de um verão ditatorial,
que eu visse os anéis de Saturno a libertarem
a Terra do domínio maoísta do tempo e das temperaturas.
Bastava-me caminhar na grama com pés descalços
e tocar música com o violoncelo, amigo discreto,
a atrair os gatos da rua e os abutres desprezados
para uma festa de inválidos regada a minuetos e vinhos.
Bastava-me o canto e o cheiro de jasmins depois da chuva
e as formigas entre as pedras movendo suas coisas
anunciando chuvas torrenciais entre as pedras e coisas.
Bastava-me correr. Ser só. Que ninguém me visse.
Que não me falassem, que não competissem
nem me arrastassem para suas opiniões
cheirando a lixo e perfumes com as mesas
cheias de cadáveres e eu tendo que sorrir para deputados
e professores-poetas segurando suas taças de champanhe
tão finamente e cigarros entre os dedos, altos.
Que me larguem e me esqueçam. A rua amanheceu fria.
Para ser, dizem, é preciso ser duro, persistir e trabalhar duro,
cinzelando e se sujando e criando gastrites e dores lombares.
Por que pressupõem tais prazeres pervertidos?
Não frequento Paraty, nem Frankfurt, nem qualquer lugar
onde os elegantes se reúnem em fóruns, mesas-redondas
(falam tnto que suas bocas se abrem a cada dia mais)
pois não conheço Euclides da Cunha nem Borges,
nada sei em detalhes porque não passei noites em tomos.
Sou uma simples moça no campo, trabalho na vinha
só para meu sustento, e para alimentar meus animais.
À noite toco música e meu violoncelo me basta.
Predisseram que eu seria intelectual, poetisa, literata, diplomata.
Nunca quis literatura. Bastava-me o rio à tarde e minhas claves.
Literatura eu mancho com vinho e biscoitos caseiros.
Friday, January 01, 2010
Ano Novo
Hoje os anões deixaram
as meninas brincarem na rua.
Não choveu, mas não fez sol.
E ainda vejo da janela a jasmineira moribunda.
Não posso brincar na chuva.
Também não perderia tempo
expondo-me aos calores aborrecidos do sol
num verão endemoniado como um czar.
Mas não há mais livros nem discos
a serem ouvidos. E outros ainda riem
e se regozijam em manter-se acordados à noite.
E mostrarem suas olheiras para serem intelectuais.
Tenho medo, os gatos miam e os morcegos
estão por toda parte, não há esperança
É tempo de guerra, é tempo de carpideiras que uivam.
Sinto que morrerei em poucos dias.
Preciso reunir minhas últimas energias
para dar um concerto a toda gente,
mas meu violoncelo está desafinado
e as cravelhas não me obedecem.
Sinto dores nas costas e um anjo caído
falou-me ao ouvido. Era pálido e tinhas olhos de cão.
Dia primeiro de janeiro. A manhã era cristalina,
a tarde embaçou, a noite se tornou febre amordaçada.
Resta ouvir as antigas peças, e encontrar as muitas horas
perdidas entre as linhas da partitura, em dias de mormaço,
em noites de chuva sem propósitos, em sonhos mortos
de crianças que adoeceram e se tornaram feios adultos deformados.
*Pinturas de Séraphine de Senlis.